OS LADOS DESCONHECIDOS DAS LENDAS URBANAS ABORDADAS EM CIDADE INVISÍVEL

As lendas urbanas são resultantes da uma mistura do real com o imaginário, e por serem narrativas orais, partes delas foram se moldando ao longo do tempo. Conheça os lados menos conhecidos, suas origens, inspirações e saiba quais partes da série Cidade Invisível realmente representaram o folclore brasileiro.

As lendas urbanas são tramas resultantes de uma mistura do real com o imaginário, transmitidas oralmente pelas pessoas com o objetivo de explicar acontecimentos misteriosos ou de criar um modelador da moral e de alerta para melhores costumes sociais.

Por serem narrativas do boca a boca, ao longo do tempo, as lendas brasileiras passaram por modificações de acordo com o imaginário popular. E, justamente por esse motivo, até que fossem escritas, elas possuíam várias versões e algumas apresentavam semelhanças com os mitos de outros países.

No dia 5 de fevereiro de 2021, foi lançada na plataforma da Netflix a série brasileira Cidade Invisível, onde a narrativa se desenrola com as lendas urbanas brasileiras mais famosas: Cuca, Iara, Curupira, Saci, Boto Cor-de-Rosa e o Corpo Seco. A questão é: essas lendas se resumem apenas ao que foi abordado na série? O que mudou ali e o que faz parte da nossa história nacional?

Mesmo que, graças à série, essas lendas tenham vindo novamente à tona, existem lados menos conhecidos que o NÃO ÓBVIO separou para traçar esclarecimentos e curiosidades.

Confira os mitos brasileiros, de onde tiraram as inspirações para as histórias, suas partes esquecidas ao longo do tempo, e reaviva o lado cultural histórico influenciado pelos povos africanos, indígenas e portugueses.

1. Cuca – A bruxa do sono

Personagem Inês, a Cuca, na série Cidade Invisível (2021) – Divulgação / Netflix

Um monstruoso dragão, uma velha horrenda que se alimenta de crianças, uma bruxa com traços de jacaré ou uma bela mulher com ar materno, capaz de entrar na sua mente, assombrar os seus pensamentos e transformar os seus lindos sonhos em pesadelos.

A Cuca é uma das entidades mais conhecidas no Brasil, não só pela música “Nana, neném” como pela obra televisiva Sítio do Picapau Amarelo, de 1970. Porém, essa entidade possui sua origem dos folclores de Portugal e da Espanha, e chegou em território brasileiro durante o período de colonização.

Em Portugal, Cuca é conhecida pelo nome de Coca e também assombra as crianças, mas sob a forma de dragão. Inclusive, em algumas terras portuguesas, existia a figura de Santa Coca que, como oferta simbólica, enfrenta São Jorge na festa de Corpus Christi. Já na Espanha, esse mesmo dragão ganha uma cauda de serpente, um grande par de asas e patas de grilo. E essa figura está presente nos cortejos espanhóis de Corpus Christi, especialmente na Galícia.

Festa de Corpus Christi: Coca enfrenta São Jorge

As palavras coca e coco nessas regiões, trazem uma ideia de caveira, ou seja, uma referência a morte, personificação ou um símbolo do mal, que se manifesta na forma de Coco, uma outra assombração sendo este o ente obscuro, do medo e devorador. E, de acordo com Luís da Câmara Cascudo em seu livro Geografia dos Mitos Brasileiros (1947) , indica que Coco, Coca e Cuca são a mesma entidade de assombros seculares e pesadelos, porém, com formas distintas.

No Brasil, as ideias da caveira e seus símbolos, a essência de Coco em ser o ente do medo e devorador somados a uma certa influência da cultura indígena e africana, Cuca se tornou uma velha bruxa, de cabelos brancos, capaz de ler ou entrar na mente das crianças para causar pesadelos, misteriosa, horrenda, e por fim, que se alimenta de crianças desobedientes ou falantes.

De acordo com o significado das palavras dentro da tradições e cultura de cada povo, o aspecto de velha e decrepita foi influenciado pelo idioma mbunda, um dialeto africano. No dialeto Tupi, o termo Cuca era uma referência para animais noturnos que devoravam as suas presas, como a coruja ou mariposas – de acordo com o pensamento popular indígena da época -.

Com o passar do tempo, elementos típicos das histórias das bruxas como o caldeirão, poderosas garras e até características répteis foram acrescentadas a lenda de Cuca. E a obra televisiva O Sítio do Picapau Amarelo, disseminou a ideia pelo país dando um toque brasileiro onde essa entidade era uma mulher na forma de jacaré com cabelos loiros.

No entanto, Cidade Invisível apresentou uma Cuca com um lado humano que condiz com todas as tradições. Inês, é capaz de invadir a mente das pessoas, de se transformar em borboletas ou mariposas que na cultura indígena, eram considerados animais poderosos. O seu lado humano é representado por uma mulher que engravidou e por conta das adversidades, resolveu criar o filho sozinha que posteriormente nasceu morto.

Por conta desse sofrimento, a natureza enviou uma mariposa mágica a transformando em Cuca, se tornando a responsável pela memória, sonhos e pesadelos das crianças. Tanto que, ela na série é uma figura materna e transformada em líder dos outros seres folclóricos mesmo com todo o ar de mistério.

Personagem Inês, a Cuca, na série Cidade Invisível (2021) – Divulgação / Netflix

2. Iara – Mãe D’água

Iara – Ilustração

Diretamente da Europa para o Brasil e adaptada pela cultura indígena no período de colonização, Iara é uma sereia – metade mulher, metade peixe – conhecida por atrair os homens com sua beleza, canto e promessas de riquezas.

Muito conhecida na região norte do Brasil, a lenda indígena conta que Iara era filha de um pajé, e suas habilidades como guerreira causava inveja nos seus irmãos e por isso, resolveram matá-la. Durante a emboscada, Iara derrotou todos os seus irmãos levando-os a morte.

Por medo do castigo do pai, resolveu fugir. Mas foi encontrada e a sua punição foi ser lançada no encontro dos rios Negro e Solimões. Ela foi salva pelos peixes, e assumiu a forma popularmente conhecida como sereia.

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No idioma Tupi, o termo “Iara” significa senhora das águas, e os índios tinham o costume de ligar muitos elementos da natureza ao perigo e a figura de mãe, por isso, ela também é conhecida como a Mãe D’água e temida por ter uma beleza cujo o único objetivo de utilizá-lo com os homens era de levá-los a morte.

Os portugueses, diante da história contada pelos indígenas e por conta do desconhecimento da cultura indígena, ligaram a lenda de Ipupiara, um monstro que habita os rios e que saía para caçar e matar indígenas, a história de Iara.

Na série Cidade Invisível, Camila com o seu lado humano e representante de Iara, reuniu todos os elementos e influencias das culturas: é uma sereia, negra, com uma aparência belíssima e voz que hipnotiza os homens, colocando-os em um transe podendo ter a resposta para qualquer pergunta ou para cumprir finalmente a sua maldição de levá-los ao fundo do oceano, causando a sua morte.

Na história de origem humana, ela tinha supostamente um romance proibido com um homem, e ele com medo do que podia resultar daquela relação, resolveu matá-la e jogar o corpo no mar. Mas o mar devolveu a vida a ela, dando uma maldição eterna de levar os homens a morte por afogamento.

Cena da série Cidade Invisível – Divulgação/Netflix

Obs.: Por conta da personagem ter a ligação com o mar e não com os rios, muitos telespectadores da série ligaram Camila a imagem de Iemanjá, já que a orixá é muito presente no Brasil e sua história contém o mar como uma característica principal.

3. Saci-Pererê – O menino travesso

Saci Pererê – Ilustração

A lenda do saci é muito conhecida no Brasil, mas como todas as outras lendas, sofreu alterações ao longo do tempo ou possuía versões que fossem de acordo com a cultura local.

O saci-pererê popularmente conhecido é um menino negro, bem travesso, com um gorro vermelho e que sai saltitando por aí com uma perna só e um cachimbo na boca. Ele pode ser considerado bom por apenas assustar as pessoas, sumir com alguns objetos, ou, ser considerado como um ser maléfico que amedronta e suga o sangue dos cavalos na lua cheia, e por isso, quando os fazendeiros viam os cavalos agitados, já imaginavam que tinha um saci por lá. E os redemoinhos? Usavam para encher a casa de poeira.

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Nas tribos indígenas do sul, o consideravam como o guardião das ervas e plantas medicinais que haviam nas matas, que sabia todas as técnicas de manuseio e de preparo para qualquer medicamento que poderiam ser. E por isso, os índios do sul acreditavam que o saci era um entidade que devia ser respeitada.

Já entre as tribos Tupis era bem diferente. Era comum no pensamento regional entre o sul, centro-oeste e norte, que o saci era um menino que se transformava em um pássaro e nas sextas-feiras podia voltar a forma humana. O autor Barbosa Rodrigues registrou a história Saci-Ave que era comum na região do Rio Solimões.

Em resumo, na história havia um líder de uma comunidade que tinha dois filhos e viviam felizes, mas o tio odiava esses sobrinhos e um dia os chamou para ajudar na derrubada de árvores para preparar a terra para plantio. Chegando na floresta, o tio embriagou os rapazes e os matou.

Os meninos acordaram como espíritos e foram na casa da avó que os viu e eles explicaram que não eram mais gente e sim, espíritos. A avó deles presava pelas tradições da tribo e orou para que os espíritos fossem preservados na forma de ave. Na história, um dos meninos acabaram virando o pássaro saci-pererê, e o outro matim-pererê.

Na série, resgataram toda a simbologia de resistência ao período escravocrata do país ao personagem, e o colocaram como um escravo que foi torturado, e que para salvar a sua vida, teve que cortar a própria perna. Pela quantidade de sangue perdida, morre na floresta e é acolhido pela natureza e lua, sendo transformado em uma entidade por um redemoinho.

A partir disso, seria um ser místico com poderes sob o vento, preocupado com o bem-estar das demais entidades que ele considerava.

Cena da série Cidade Invisível – Divulgação/Netflix

4. Curupira – O demônio dos índios

Cena da série Cidade Invisível – Divulgação/Netflix

Curupira é protagonista de uma lenda que surgiu entre os indígenas e considerada como uma das mais antigas do nosso folclore, sendo conhecida pelos portugueses no século XVI. O ser mítico do folclore brasileiro era conhecido como o guardião das florestas que punia aqueles que entram nela para derrubar as árvores ou caçar animais por mero prazer.

Suas características físicas mais conhecidas são os seus pés posicionados ao contrário, cabelos vermelhos como fogo e que possui uma força física sobrenatural apesar de ser pequeno verde (anão), influenciado pelo duende europeu. Inclusive, os índios tinham pavor de Curupira, pois acreditavam que os cadáveres que eram encontrados nas florestas teriam sido alvo dele. As relatos em forma de crônicas feitas pelos portugueses mostravam isso.

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O primeiro a citá-lo foi o jesuíta José Anchieta, em 1560 quando estava estabelecido em São Vicente. Em seu relato, citava “um certo demônio” chamado de Curupira pelos índios que castigava com frequência e até matava aqueles que entravam no mato. E outros índios afirmavam que Curupira se comunicava por assovios, gritos ou batidas nos troncos. Quem desobedecesse seu chamado, era punido, caso contrário, ganharia uma recompensa.

A lenda ficou tão famosa entre os índios e portugueses, que com o tempo, chegou ao conhecimento das tribos indígenas guaranis, localizadas na Bolívia e Paraguai. Em Paraguai, os estudiosos reconhecem que há essa mesma lenda, sendo Curupira o guardião da floresta, porém, com o nome de Kurupi e sua história com um apelo sexual.

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Pela lenda paraguaia, o Kurupi é um espírito da sensualidade, sendo um índio baixo, forte, feio, moreno e olhos negros, com um grande pênis que prendia na cintura. Ao entardecer ou a noite, perseguia as mulheres e as dominavam com o seu órgão deixando-as loucas ou mortas. Para se livrar, a opção era cortar o órgão para que ele perdesse os seus poderes.

Na série, todas as características tupi, incluindo o lado dele como o líder das entidades da floresta, foram trazidas através de sua história, dando uma narrativa humana, sendo o protetor da mata, um amigo dos indígenas ao ponto de constituir uma família. Como a sua esposa o ajudava com a proteção da floresta, é nítido ver o seu ódio e desespero do Curupira quando os vê mortos.

A cachaça e o fumo, inclusive, era utilizada como prevenção pelos indígenas. Por isso que na série vemos o Curupira na cidade, sem esperanças e mesmo assim, muito respeitado por outras entidades.

Cena da série Cidade Invisível – Divulgação/Netflix

5. Corpo Seco – O real transformado em lenda

Cena da série Cidade Invisível – Divulgação/Netflix

Sendo um ser amaldiçoado do folclore brasileiro e resultado da influência europeia. O Corpo Seco é uma espécie de morto-vivo que vaga pela Terra aterrorizando as pessoas como punição por ter sido tão mal em vida, que nem a terra, o céu e nem o inferno quiseram aceitar a sua alma.

Em geral, a lenda conta a história de um homem que cometia atrocidades em vida, entre elas, bater na própria mãe. Sua aparência assustadora, resumidos em ossos, couro e grandes unhas e cabelos que não param de crescer.

Dependendo da região, alguns afirmam que na lenda, o corpo seco suga o sangue das suas vítimas, tornando-os iguais a ele. E o seu objetivo? Ir atrás daqueles que não obedeciam suas mães e aqueles que não seguiam as condutas e morais determinados pela sociedade.

O interessante é que aparentemente, um fazendeiro inspirou essa lenda. E essa história foi contada por Dino Menezes. No século XVII com a “corrida do ouro”, o fazendeiro Miguel Antônio da cidade de Registro, desempenhou o papel de um homem maquiavélico, cujo sua cobiça e loucura pelo ouro anulou completamente o seu lado bom com qualquer pessoa que ultrapassava o seu caminho, inclusive sua família, que fugiu dele indo para São Paulo apenas com a roupa do corpo.

Sua história se espalhou pela Região do Vale da Ribeira, e todos temiam e comentavam as suas barbaridades cometidas contra os seus escravos, por exemplo, que eram mortos caso falhassem ou se ele tivesse qualquer suspeita. Os escravos mais velhos, eram obrigados a carregar o ouro para a beira do rio, mandava cavar a própria cova para serem enterrados vivos com o ouro. Estima-se que mais de 300 escravos foram vítimas de sua barbárie, e talvez esse homem tenha sido o maior serial killer do século XVII, que fora nunca punido por seus antes não considerados crimes pela Coroa Portuguesa.

Dizem, que ele viveu até os seus 115 anos, e a sua cobiça por riquezas não o deixava morrer, até que morreu por uma doença estranha que o fazia o corpo queimar. Antes do enterro, seu corpo sumiu e alguns acreditam que os escravos roubaram o seu corpo e fizeram um ritual para que ele ficasse preso à vida terrena, e por fim, enterrado.

Mas, por ser um homem esperto, permaneceu vivo e se alimentava da energia das árvores e com o sangue que sugava das pessoas na tentativa de permanecer vivo. Por suas maldades continuarem após a sua morte, ele foi considerado pelos moradores como o próprio corpo seco da cidade de Registro.

Na série, as características de ser um fazendeiro mau, que matava os animais ou pessoas por prazer, sua cobiça pelas terras e negado por Deus e pelo diabo, foram trazidas com maestria para o vilão das lendas e da narrativa de Cidade Invisível.

Sua capacidade de possuir as pessoas ou plantas, atende a sua vontade de continuar vivo para continuar praticando suas maldades com quem passasse pelo seu caminho, incluindo as entidades do folclore, sejam elas as mais poderosas ou não.

Cena da série Cidade Invisível, representando o corpo seco – Divulgação/Netflix

6. Boto cor-de-rosa – O galante sedutor

Boto cor-de-rosa.

A lenda do Boto cor-de-rosa é de origem indígena, que surgiu na região Amazônica, norte do país. Reza a lenda que o animal, super inteligente e semelhante ao golfinho que vive no fundo das águas amazônicas, se transforma em um belo jovem nas noites da lua cheia.

Normalmente, ele aparece nas festividades do São João, com roupas brancas e um grande chapéu que cobre o seu grande nariz pois não passa por uma transformação completa.

Por ser comunicativo, dono de um belo estilo, galã e comunicador, consegue seduzir a jovem mais bela de sua escolha, a leva para o rio e a engravida. Na manhã seguinte, ele volta a ser o boto, e por isso, alguns usavam essa lenda para explicar uma gravidez fora do casamento.

Ilustração de Rodrigo Rosa.

Na série, tirando que a origem da lenda foi no norte do país, todas as características foram abordadas e representadas pelo humano e boto cor-de-rosa, chamado Manaus. Inclusive, seus encantos duram por toda a vida das jovens que se apaixonam perdidamente por ele, e principalmente, por se mostrar um rapaz extremamente apaixonado em suas falas, pela natureza e vida.

Cena da série Cidade Invisível – Divulgação/Netflix

Autor: Ana Raquel Barreto

Estudante de jornalismo, observadora, amante da filosofia, do conhecimento e das ideias.

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